quinta-feira, abril 20, 2006

Relatório de pré-6ª Feira Santa: magias e padres-nossos no interior do Portugal que sobrevive.

É de Páscoa que se trata, numa altura em que se revela o que Judas tinha para dizer (a justiça tarda sem dúvida) e a igreja católica anuncia os novos pecados a introduzir na infindável lista que vem criando ao longo da história. A televisão, os jornais e a Internet são agora pecado. Mais uma artimanha católica para impedir a aquisição de conhecimento por parte dos seus seguidores, visto ser o conhecimento o maior inimigo das religiões, não de Deus, porque esse não tem inimigos. A Ele apenas sugiro que coloque olhos nisto e faça com que esta igreja não corrompa mais os mundos com as suas imundices.

Mais uma vez regresso ao Portugal profundo. Aqui não há a Internet, a televisão consegue melhor sintonia numas casas e pior noutras. Salvaguarde-se contudo que o café tem o mais famoso canal desportivo português, e o jornal do futebol é o único que merece compra diária. Haverá eventualmente um jornal generalista naquele café: o de Domingo passado, mais notícias só no próximo. Ou na TV, mas agora que é pecado quem saberá o que fazer.

Neste café onde me encontro prepara-se um espectáculo de magia. Mágico e respectiva assistente preparam os adereços com que irão iludir os presentes, mais logo, às 21h, como afirma um papel rabiscado afixado na porta. Senhoras e senhores, meninos e meninas, que magnífico o trabalho destes ilusionista que fazem das aldeias o seu mercado, de 2 metros quadrados uma arena de circo e do café uma plateia. Se atrair metade da população da aldeia, não serão mais de trinta os do adorável público. Como trinta aqui não entram, chegarão uns quinze para encher a tenda. Esperemos que destes nenhum renuncie ao copo de vinho de logo mais, fora da alçada da mulher, aos olhos da assistente de perna jeitosa que animará a malta. Se todos vierem ao copinho, então teremos a sala composta.

À chegada ao café reparei numa caravana que se encontra estacionada junto ao cruzeiro, do lado esquerdo da igreja, em torno da qual se agrupam as casas que compõem a paisagem rural deste lugar. A antena parabólica está atada a uma vara de ferro amarrada ao veículo, se bem me lembro esta antena é prenúncio de pecado. Junto ao paralelo granítico humedecido pelo fim de tarde, uma gaiola branca repleta de pombas de igual cor. O pensamento distante em resultado de toda a abstracção inspirada pelo ambiente aldeão não me faz concluir de imediato que pombas brancas são sinal de mágico por perto. Assim é. O mágico arma a tenda logo à entrada do café, ali no canto direito, disputando o espaço com uma arca de gelados espanhóis e uma salamandra cuja utilidade já tive oportunidade de comprovar noutros dias menos primaveris.

O olhar prende-se de imediato nos objectos de maior porte. Uma caixa equipada com um leitor de cd’s, um amplificador, uma mesa de mistura estrepitosa, e um aparelho emissor de microfone, todos com aspecto de que a qualquer altura deixarão o mágico sem argumentos artísticos que devolvam os aparelhos à vida activa e sobretudo proveitosa. Amontoam-se quatro pequenas mesas já gastas cujos tampos assentam em tripés de metal consumido por ferrugem, das quatro, três, reparo estarem curiosamente cobertas por lenços de lantejoulas douradas, a outra está coberta por um farrapo preto e branco com CK por todo o lado. Calculo que seja CK de Calvin Klein, estranho mágico este, de camisa florida somente na zona dos botões, transparente o suficiente para podermos ver a barriga lotada de cerveja, afinal a tarde esteve boa e o sol abundou lá para os lados do cruzeiro, os mesmo lados do café portanto, e de toda aldeia por conseguinte. Amparado pela arca frigorífica e impedindo a passagem para a secção de mercearia, abra-se um parêntesis para dizer que se trata de um fiel exemplar das mercearias de Portugal que como este jardim estão habituadas a dizer coisas, todavia a entrada desta que agora vejo faz-se por porta interior do café e ninguém passará até que as magias levem qualquer coisa que se parece com um carro de mão seguro pelo dito frigorífico, mais uma coluna de som gritante, ruidoso, mal equalizado, rompendo o espaço com um tema de boieiro à boa moda brasileira em pleno Portugal interior! Vibrando com a força das ondas sonoras, um malão cheio de surpresas jamais vistas, muitas pensadas para crianças que por aqui não as há, mas se pensarmos que depois de velhos voltamos a ser crianças, então senhor mágico, tudo isto acaba de ganhar sentido redobrado. A terceira idade abunda neste portugalzinho que aos meus olhos se revela, e que genuíno me parece visto daqui. No chão, um tapete com marcas que serão sinal de uso intenso e manutenção inexistente. O homem amanha a fiarada tipo esparguete, a sua assistente prepara os acessórios com que iludirão os presentes. Se de missa se tratasse que bonita sacristã aqui teríamos, os padres, esses, são todos iguais. Mais logo, depois do show, regressarão à roulote puxada por um daqueles furgões vermelhos usados habitualmente por cidadãos de índole duvidosa, dirá o povo. Gente com os seus gostos e preferências cromáticas, dizemos nós. Como se dizia, nesta casa de atrelado contarão os dinheiros que reunirem na mostra artística que agora preparam. Boa Sorte.

Vinte passos são suficientes para alcançar a porta da igreja. As poucas vozes ecoam e fazem-se ouvir ao longe. Se por lá orasse a vossa avó, certamente lhe reconheceriam as falas cá do adro. Por esta altura abrem-se as algibeiras ao pagamento da bula, dali sairá o abade para outra aldeia onde arrecadará mais bulas e mais proveitos. A verdade mora aqui, a bula está paga sim senhor, disseram-mo e eu não contesto. Ao que parece continuarei a acumular dívidas nesta aldeia que tomei por empréstimo. O abade sai mais feliz e de bolsos mais pesados. Atravessa o pequeno adro, deita os olhos à casa ambulante ali apeada, às pombas brancas que na gaiola permanecem, logo serão lenços da cor imaculada e amanhã regressarão para mais uma sessão evidenciando que de magia efectivamente se trata. Entra o padre no café depois de contornar um rafeiro que se descansa na porta que range e chega-se ao balcão de alumínio. Um vinho do porto, ai senhor abade! O folhear de um jornal, ai senhor abade! O comentário sobre o clube pelo qual morreria e cujo jogo da jornada se adivinha difícil, merecendo especial anúncio em mais um telejornal, ai senhor abade! Já não pode um padre aproveitar o tempo livre entre missas. Azares de quem milita numa religião obsoleta. Toma o vinho, sai, entra no carro bem polido e viajará para a próxima eucaristia, rápido, lestro, não vá o santo padre lembrar-se de excomungar o uso do automóvel durante o caminho e o restante ter de ser levado a pé, qual peregrino, com Deus como testemunha deste, respondendo às vontades daquele que neste mundo tudo parece puder, e deus não é decididamente. Desligue-se o rádio, este apesar de não ser pecaminoso poderá trazer estas notícias do Vaticano. Apesar de santa, amanhã a Sexta-Feira é de trabalho para este homem feito abade. Afinal não pensemos em folga, a gorjeta costuma ser generosa aos bolsos dos funcionários do sacerdócio, particularmente por estes dias. Grandes obras farão estes padres. Nós as veremos. Na realidade já nem santa é esta Sexta-Feira para os militantes da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), antes Cristo tivesse sido crucificado à Segunda-Feira e não teriam os trabalhadores do terciário mais este pecado para redimir.

Volto a casa. A chegada da noite trouxe o frio. A lareira flamejante adivinha as minhas necessidades. Junto a ela vos conto tudo isto, com as mãos debruçadas num computador portátil: Ai de mim!

Babince