sexta-feira, abril 07, 2006

Hoje trago-vos um doce.

Resolvi trazer-vos esta semana um excerto do livro de José Saramago publicado em 1982 intitulado Memorial do Convento. Nesta fatia que escolhi, Sete-Sóis apresenta-se a alguns dos seus colegas de trabalho na construção do convento de Mafra. Deliciem-se. Mais não digo.


“O meu nome é Baltazar Mateus, todos me conhecem por Sete-Sóis, o José Pequeno sabe por que assim lhe chamam, mas eu não sei desde quando e porquê nos meteram os sete sóis em casa, se fôssemos sete vezes mais antigos que o único sol que nos alumia, então devíamos ser nós os reis do mundo, enfim, isto são conversas loucas de quem já esteve perto do sol e agora bebeu de mais, se me ouvirem coisas insensatas, ou é o sol que apanhei, ou do vinho que me apanhou, o certo é ter nascido aqui, há quarenta anos feitos, se não me enganei a contar, minha mãe já morreu, chamava-se Marta Maria, meu pai mal pode andar, acho que lhe estão a nascer raízes nos pés, ou é o coração à procura de terra para descansar, tínhamos aí um cerrado, como o Joaquim da Rocha, mas, com tanto mexer de aterros, já lhe perdi o sítio, até eu levei alguma terra dele no carro de mão, quem haveria de dizer ao meu avó que um neto seu atiraria fora terra que foi cavada e semeada, agora põem-lhe um torreão em cima, são as voltas da vida, a minha também não tem dado poucas, enquanto moço cavei para os lavradores, o nosso cerrado era tão pequeno que o meu pai dava conta do trabalho em toda a volta do ano e ainda ficava com tempo para tratar duns bocados que trazia de renda, bem, fome, o que chamam fome, não passámos, mas fartura ou insuficiência nunca soubemos o que era, depois fui para a guerra de el-rei, ficou-me lá a mão esquerda, só mais tarde é que soube que sem ela começava a ser igual a Deus, e como deixei de servir para a guerra, voltei a Mafra, mas estive uns anos em Lisboa, é só isto e mais nada, E em Lisboa, que fizeste, perguntou João Anes, por ser de todos o único oficial de um ofício, Estive no açougue do Terreiro do Paço, mas era só acarretar a carne, E quando foi que estiveste perto do sol, isto quis Manuel Milho saber, provavelmente por ser ele o que costumava ver o rio passando, Essa, foi de uma vez que subi a uma serra muito alta, tão alta que estendendo o braço tocava-se no sol, nem sei se perdi a mão na guerra, se foi o sol que ma queimou, E que serra era, em Mafra não há serras que cheguem ao sol e no Alentejo também as não há que Alentejo conheço eu bem, perguntou Julião Mau-Tempo, Talvez tenha sido uma serra que nesse dia estava alta e agora está baixa, Se para arrasar um monte destes são precisos tantos mil tiros de pólvora para fazer baixar uma serra gastava-se toda a pólvora, que há no mundo, disse Francisco Marques, o primeiro que falara, e Manuel Milho teimou, Chegar perto do sol, só se tivesses voado como os pássaros, lá na lezíria vêem-se às vezes uns milhafres que vão subindo, subindo, fazendo rodeios, e depois desaparecem, ficam tão pequenos que já não podem ser vistos, e então vão ao sol, nós é que não sabemos nem o caminho por onde se chega, nem porta por onde se entra, mas tu és homem, não tens asas, A não ser que sejas bruxo, disse João Pequeno, como uma mulher da terra onde fui achado, que se untava com unguentos, punha-se a cavalo numa vassoura e ia à noite de um sítio para outro, isto era o que se dizia, que eu, ver, nunca vi, Eu não sou bruxo, ponham-se a dizer essas coisas, e leva-me o Santo Ofício, e também ninguém me ouviu dizer que voei, Mas declaraste que estiveste perto do sol, e ainda outra coisa, que começaste a ser igual a Deus depois de teres ficado sem a mão, se tal heresia chega aos ouvidos do Santo Ofício, então é que não te salvas mesmo, Salvávamo-nos todos se nos fizéssemos iguais a Deus, disse João Anes, Se nos fizéssemos iguais a Deus poderíamos julgá-lo por não termos logo recebido dele essa igualdade disse Manuel Milho, e Baltazar explicou enfim, com grande alivio de já não se estar falando de voar, Deus não tem a mão esquerda porque é à sua direita que se senta os eleitos, e uma vez que os condenados vão para o inferno, à esquerda de Deus não vem a ficar ninguém, ora, se não fica lá ninguém para que queria Deus a mão esquerda, se a mão esquerda não serve, quer dizer que não existe, a minha mão não serve porque não existe, é só a diferença, Talvez à esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus esteja sentado à direita doutro Deus, talvez Deus seja só um eleito doutro deus, talvez sejamos todos deuses sentados, donde estas coisas me vêm à cabeça, é que eu não sei, disse Manuel Milho, e Baltazar rematou, Então sou eu o último da fila, á minha esquerda é que não se pode sentar ninguém, comigo acaba-se o mundo, Donde vêm tais coisas à cabeça destes rústicos, analfabetos todos, menos João Anes, que tem algumas letras, é que nós não sabemos.”

SARAMAGO, José (1982), Memorial do Convento, Caminho, Lisboa


Agradecendo a Saramago.
Babince

2 Comentários:

Blogger Ken Ewing Disse as coisas que se seguem:

A teoria sobre Deus não ter a mão esquerda é delirante. Este Baltazar Sete Sóis parece ser uma personagem assaz complexa. Nunca li o livro, mas confesso que me abriste o apetite.

Abraço!

8/4/06 03:04

 
Blogger Unknown Disse as coisas que se seguem:

já sabes tudo o que poderia dizer sobre esse livro.

forte abraço

8/4/06 03:47

 

Enviar um comentário

<< Regressar ao Centro do Jardim