Viagem
Sete da tarde de uma sexta-feira em Abril, nesse longínquo ano de 2006. Está nublado, corre uma brisa fresca. A voz metálica do megafone anuncia chegadas e partidas de autocarros.
Pessoas encarreiradas como formigas. Num tumulto ordeiro. Arrancamos? Não…Mais um pequeno atraso…Um passageiro retardatário…mais um autocarro que entra, e enfim, partida. A cidade começa a entardecer, já não ruge, sussurra. Pessoas em passo lento, outras quase galopam. Gaivotas no alto dos telhados. Em busca de vista, em busca de ar fresco, em busca de comida, de uma briga ou de um parceiro?! Não sei… É assim a vida com asas!
…Semáforo…Vermelho…………..Verde!
Encosta do Douro, plena de casas devolutas, fazendo lembrar uma dentição cariada. Última descida até à ponte, um salto para o outro lado, rápido, por cima da Artéria Fluvial. …Remadores…Crepúsculo Invisível…
Adeus Porto … Até à volta!
Do outro lado, como primeira amostra do espírito de Gaia, o Morro com ervas daninhas e canhões obsoletos. Sombras, pretéritos da glória passada…ou espectros da brutalidade presente?
Vento de Nordeste. Fraco. Mal faz balançar, nas árvores, as folhas imaturas agora postas ao mundo.
Semáforo, Linha de Metro… lagarta serpenteante nos carris, com o bojo cheio de vida em estado latente. Pessoas com cara de autocarro a andarem de Metro…! …Gargalhada…
Os meus “camaradas de viagem” ouvem, olham para mim e lá devem ficar a pensar que sou maluco. Miúdos sentados em vãos de escadas com o Universo reflectido nos olhos. Mil e uma coisas passam-me pela cabeça e elas não se fixam, não se denunciam...!
Paragem… Entrada de mais gente. Uma passageira! Acaba por se sentar a meu lado devido à escassez de lugares. Uma mulher pela qual, facilmente, um gajo se “perde”. (Tenho o coração mole).
Reparo que o lixo se empilha pelas esquinas…os pedintes também. Cidade em obras. Vida em obras. Mundo deteriorado, devoluto… Obsoleto! Árvores, canteiros, cães, bocas-de-incêndio. 82, 84, 33, 83. Laborim, Vilar de Andorinho, Coimbrões, Vila d’Este! Corredores vitais de tais populações. Sto. Ovídeo, rotunda caótica, onde tudo se entende e segue rolando. O motor ruge, arfa, bufa. Parte em direcção a Sul. Lotação cheia. Cheiros, tosses e tossidelas. Auto-estrada. Velocidade galopante na pança do monstro metálico que nos guia até à última paragem, no meio de uma terra esquecida.
Armazéns, casas, prédios, ringues, silvados, rails de protecção, asfalto e outros competidores da corrida da vida. Tudo desfila perante a retina como se não fosse nada… como se tivesse sido sempre assim. Pontes, viadutos, sinais, ramais, postes de iluminação… dá para ver, O Mar, daqui… Dez quilómetros em linha recta, lá no horizonte, a massa primordial. Uns ténues raios de sol, espelham-se e espalham-se na sua superfície, em tons dourados bruxuleantes.
Dentro do autocarro, vai tudo quieto e calado. Música de rádio imperceptível. Só ecoa no ar rarefeito desta “chocolateira”, a minha voz e da Raquel (sim, este é o nome da senhora que a meu lado se sentou). Já nos conhecíamos… sentiu-se curiosa, perguntou o que estava a escrever e o porquê de ter o meu “livro branco” com ditos em cirílico no exterior. É uma rapariga agradável, simpática e de conversa fácil. (Talvez já estivesse a ler o que estava a escrever antes de me perguntar. Não sei, nem lhe vou perguntar.) Só agora reparo naqueles olhos verdes… Lindos!
Saída da auto-estrada. Entrada em Sta. Maria da Feira. A Raquel sai já. Passará as férias com os pais. Até breve Raquel…
Castelo em vista. Cercos, batalhas campais, reis e bobos. Imaginários deslocados da realidade passada. Apenas sugestões, delírios… visões. (Calafrio na espinha, suor frio. Apercebo-me do fim da viagem.) Castelo afogado num místico mar verde, conferindo-lhe uma aura lendária. Dir-se-ia que lá vivem os ciápodes, panócios e cinocéfalos. O rio Cáster transforma-se em Sambathyon, para lá do qual fugiu a tribo perdida de Israel e de lá virá Presbiter Johannes (Preste João) com os seus magnos exércitos, para nos livrar da ameaça maometana. Somos todos ímpios por igual…
Mais uma paragem demorada… Retira-se bagagem do autocarro. Carrega-se novamente a vida aos ombros. Prossigo! Metade das pessoas já saíram e retornaram às suas luras.
As cores estão estranhamente outonais. A vida quase que parece recusar desvendar-se perante os nossos olhos. Os dos ignóbeis primatas. A serenidade da conformidade está no ar. Uma tensão ligeira, energia subliminar das coisas… Escapães… Arrifana… Terrinhas, enfim… Recta final!
Urbe de S. João da Madeira. Prédios novos, prédios velhos, rotundas elevadas ao expoente máximo da insanidade. Nada é autóctone. Tudo é copiado ou importado. Esta cidade podia ser em qualquer lado…
Boleia. Nove rotundas depois… Casa! No recanto da ruralidade e atavismo, a grande e insigne Macieira de Sarnes. Ainda lhe vejo certa beleza! ( … territa danada…) Nem que seja do alto de uma das suas frondosas árvores! Algumas velhas como a roda. Mais completas e realizadas do que nós, onde os pássaros se empoleiram no fim das suas viagens. Vinte horas e dez minutos, num crepúsculo de uma Sexta-Feira qualquer em Abril.
Mazi DEUS eX mACHINA
2 Comentários:
é um peso enorme ser mole de coração...
vê lá se não te perdes! lol
Grande viagem: em contacto com os pensamentos...
abraço
12/4/06 10:04
A descrição dessa viagem está sublime, a fazer lembrar as descrições de Adolfo Luxuria Canibal, no álbum cujas músicas são nomes de cidades: S21 Mutantes.
Abraço!
13/4/06 00:37
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