domingo, fevereiro 26, 2006

The simple things – or the meaning of life

Há tanta coisa que nos passa despercebida quando todos os dias, tentando criar a nossa felicidade, caminhamos pelas ruas iluminadas de compras. Tantas mãos sujas a tentar agarrar um pouco do perfume que a algibeira exala; tantas crianças ranhosas, sujas nos braços de mães que precisam extorquir a misericórdia que alimenta os vícios; pequenas doenças à porta de igrejas para comungar da benevolência…
Porto, estas são as ruas, estas as pequenas pessoas. Muitas vezes fico parado, tiro-lhes fotografias que não mostro a ninguém, cujo único propósito é fixarem quem não é visto, quem é ignorado abertamente até por mim, na minha febre de vida e de alienação.
Não sou diferente de ninguém, em nada melhor: tenho pressa, não tenho paciência nem moedas para as histórias de aterrorizar de ninguém… vivo na cidade há demasiado tempo para ainda acreditar na bondade inerente às pessoas: espero o perigo de qualquer lado, sob qualquer forma e por isso encarcero-me dentro de prisões plásticas que a televisão me diz para comprar e de onde não consigo alcançar ninguém…

Três episódios que ilustram o que anda aí fora:

Gaia, caminhava perto do largo dos aviadores quando vejo do outro lado da rua uma mulher a ser insultada por um gajo de pinta duvidosa; estalo da prache, silêncio comprometido, ninguém viu nada, ninguém agiu tolhidos pelo medo da “não-interferência”. Tenho fotos da mulher que não se atreveu a ir embora depois de ter sido agredida e do “homem” que a acompanhava.

Porto, já me aconteceu de tudo desde ver senhores de fato, grande Mercedes e pinta de director comercial a visitar as putas mais horríveis da cidade, dois cidadãos de cinquenta anos a agarrarem-se pelos cabelos e a enfiarem as suas cabeças quase calvas contra portas na raiva de qualquer gesto inobservável, avozinhas de todos nós a comerem o lixo de ninguém, gajos cobertos de pó que chegam perto de ti, se sacodem anunciando placidamente que vieram a pé de Madrid, e perguntam se ninguém tem um caneco, gajos que te pedem cinza para fumarem um caneco, gajos que te pedem um euro para comer uma sopa que sabes que nunca o irá ser, motoristas que te tentam atropelar porque atravessas no vermelho sem olhar, outros que fecham as portas com o terror do telejornal da TVI estampado no rosto, gajos com óbvios problemas com drogas duras a exigirem o pagamento da piedade que inspiram… não sei qual escolher… além do mais, se tudo isto me acontece, diz a sociedade, é porque faço algo que faz com que isso aconteça. Terei de ter mais cuidado com o meu aspecto de hoje em diante…

A caminho de casa, criança de seis anos a brincar na camioneta, mãe entediada por mais um dia de trabalho excessivo e mal pago, queixas da mãe, ruído excessivo, “estás a ser uma criança!”, eu tento ler o meu livro, fazer de conta que nada daquilo está realmente ali, mas não consigo: volto à realidade a tempo de compreender que o ruído que ouvi foi a mãe a bater na cara da miúda, a cabeça embateu na janela, choro imediato… Saí e fui a pé…


José de Arimateia, abrigado na marquise devido à chuva…

1 Comentários:

Blogger Ken Ewing Disse as coisas que se seguem:

Saudações!

Muito bem visto! De facto nada é mais real, brutal e aterrorizador que a vida real, a vida quotidiana. O mais absurdo é que as novelas e grande parte dos filmes são quase uma sátira, tentando mostrar uma realidade que não existe a não ser na tela.
Mais uma vez, e correndo o risco de ser repetitivo, passo a citar Adolfo Luxuria Canibal:
"Tudo são sombras difusas, especulações sem sentido..."
"Desta viagem entre flores plásticas e coloridas manhãs de aço, viveremos tudo revoltosos nesta primavera de destroços, sem dor, sem rancor, sem remorsos..."

Talvez por isto "Caio nesses olhos apáticos, caio nesse hipnótico abraço..."

Fika bem! Abraço :)

Ontem não tive possibilidade de comparecer no piso.

26/2/06 19:33

 

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