O Corpo
Tinha aberto os olhos.
Estava a ver tudo.
Tóni saía de casa a horas certas para ir buscar aquilo. Tinha uma predilecção pelo papel de prata. A sua figura magra e ossuda, com um ligeiro e quase imperceptível mancar estava sempre a entrar e a sair de casa: cara impenetrável, olhos pequenos e avaliadores, uma pressa incompreensível e premente.
Qualquer pessoa mais habituada a andar na rua e a avaliar com o olhar quem se cruza consigo conseguiria ver facilmente quem ele era; o que fazia; a pressa que o comandava. Pouco mais se sabia sobre essa personagem: das roupas usadas saía um cheiro subtil a suor, doença, um banho já antigo. Muitas vezes me cruzava com essa personagem em vários pontos da cidade. Sempre de noite - de dia raramente era visto.
Havia uma casa onde ele existia: mulher e filho. Coisas como toda a gente acaba por ter. O puto andava de um lado para o outro. A mulher raramente a via: existia algures numa fronteira invisível que se quebrava quando se ouviam sons de gritos, coisas que partiam, luzes que se apagavam. Tóni saía de casa, seguro de si, sempre com a mesma pressa.
O puto via-o de dia... de noite quase nunca a não ser no verão, quando o calor convida à vadiagem própria da infância. De dia estava à janela: assobiava e escondia-se; por vezes, aos mais desatentos que ficavam a olhar para cima, cuspia... também o fazia a uma velhota que passava várias vezes na rua... eu ria-me e compreendia: quem na infância não tinha repulsa à morte que se anunciava? e lutava contra ela com as armas possíveis...
Num dia algo de estranho se passava. Dois camiões na rua; dois polícias e carro patrulha estacionado ao fundo da rua; vários gajos, se calhar trolhas?
Voavam coisas da janela: roupas, lençois, cobertores, sacos, toalhas de mesa, talheres... armários e mobiliário e televisores duvidosos explodiam nas traseiras da carrinha de caixa aberta; da janela aberta de onde choviam os objectos ouviam-se ruidos de coisas a partir, de madeiras a quebrar: uma ausência de vozes humanas.
Cá em baixo, junto às carrinhas, os bófias esperavam não sei o quê. Guardavam não sei que valor... Sempre que algo caía, sempre que algo se partia havia um sorriso nas suas fauces; um esgar de prazer por um qualquer estranho dever estar a ser cumprido. Senhoras de aspecto e carteira respeitável paravam a ver. Diziam que nada daquilo fazia sentido. Perguntavam o que estava a acontecer e diziam que a lei pode ser cumprida sem estragar o pouco que tem quem pouco tem. Os bófias sorriam e diziam que nada disso lhes dizia respeito. Quando elas viravam costas e se afastavam um pouco olhavam-se como se dissessem: "olha lá que maluca havia de vir aqui nos chatear." - e mais um sorriso iluminava de sangue os seus carões. Mas continuavam a surgir pessoas que reclamavam, que diziam que aquilo não podia nem devia ser assim...
A chuva continuava: espreitava para dentro das caixas de carga: muito cartão, muito pano, pouca substância.
Alguns brinquedos caídos sobre o caos de tudo aquilo.
É quase cómico aquilo que os objectos podem contar sobre os seus donos... demonstrar na sua insignificância quem são e o que têm...
A operação durou pouco tempo: apenas o necessário para esvaziar a casa, selar as portas, expulsar os ocupantes.
Na rua ficaram alguns vestígios que rapidamente desapareceram: algumas folhas brancas, pequenos pedaços de madeira, um pequeno corpo de um brinquedo sem cabeça...
As pessoas continuam a passar - já não olham; já não vêem nada.
josé de arimateia, observando a chuva que dissolve
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Regressar ao Centro do Jardim