terça-feira, julho 04, 2006

A vida é um dicionário de símbolos

“O Feldwebel Daussig está estendido ao longo de uma parede e observa atentamente a rua por uma vigia aberta entre os tijolos. De vez em quando relaxa a cabeça e fecha ligeiramente os olhos cansados. Mas volta imediatamente a fixar-se no ponto de mira. A cerca de quatrocentos metros vê um soldado russo que leva um balde na mão e atravessa a rua a correr. Daussig aperta o gatilho. O russo caiu. Vinte minutos depois, um oficial atravessa também, ainda mais depressa, parece duvidar, vira a cabeça na direcção da casa onde está emboscado o Feldwebel. Um disparo. O oficial roda sobre si mesmo e cai. Dois soldados rastejam até ao pé dele tentando recolher o seu corpo, enquanto uma metralhadora abre fogo contra a parede de tijolo que protege Daussig. Os tijolos saltam em migalhas, mas já Daussig tinha recuado para outra posição de tiro, a uma centena de metros da anterior.
Nos intervalos das ofensivas, a luta contra os snipers mantém ocupadas as melhores espingardas de um e outro lado. Um homem com boa localização pode, sozinho, infligir baixas elevadas ao inimigo. Com frequência é necessário montar uma verdadeira operação para desalojar estes atiradores isolados. Os russos decidiram desembaraçar-se de um deles, que mantém debaixo de fogo da sua arma o acesso a uma cave onde se instalou um posto de comando. O sargento Zaitsev, atirador escolhido, recém-chegado a Estalinegrado, é encarregado do ataque. Transportando a sua espingarda-metralhadora preparada, chega à entrada da cave com o Capitão Rodin:
- Felizmente – diz o capitão – não pode apontar para a entrada da cave, pois se assim fosse, ninguém podia entrar nem sair. Está instalado no 4º andar de uma casa, a uns trinta metros daqui, para a direita, do outro lado da rua. Se te inclinares um pouco para este lado, o camarada consegue ver a casa.
O capitão põe-se de cócoras no portal e o sargento imita-o. Por cima da beira da trincheira escavada diante da porta, pode ver-se o esqueleto de uma casa sem tectos, que deixa ver a luz do dia através das suas janelas vazias.
- É a última janela, no 4º andar – diz o capitão.
- Terei de dar a volta ao edifício, camarada capitão. – Responde Zaitsev – Está demasiado bem protegido para poder abatê-lo de frente. Podíamos estar aqui a disparar sobre ele durante duas horas sem o menor resultado.
- Não podemos dar-nos a esse luxo. As munições e os víveres são escassos. Cada granada, cada bala, deve ser aproveitada. Não se trata de fazer troca de fogo-de-artifício. O camarada tem de abatê-lo à primeira ou segunda bala.
- Bem, então como hei-de fazer para dar a volta ao edifício?
- Não sei.
- Então vou sozinho.
- Não. Eu acompanho-o. Gostaria de poder dizer que conheço a disposição dos campos de minas que possam existir entre a posição que ocupamos agora e o outro lado da casa. Contudo, quando se tem várias semanas de experiência desta guerra de rua, adquire-se uma espécie de 6º sentido: “Ouvem-se” as minas. Só tem de me seguir. Ponha os seus pés nas minhas pegadas e faça exactamente o mesmo que eu.
Avançam pela trincheira, a uns passos de distância um do outro. Vinte metros à frente, o capitão pára e ergue lentamente a cabeça, para olhar por cima da beira da passagem.
- Podemos continuar pela trincheira até à esquina, estaremos sempre fora de mira do atirador, mas teremos de percorrer o dobro da distância por terreno desconhecido e provavelmente semeado de minas. Se sair agora, podemos tropeçar nalguma bala, mas teremos de percorrer menos caminho e, portanto, menos riscos de minas.
Zaitsev reflecte uns segundos e depois responde:
- Vamos pelo caminho mais curto.
- Essa é a resposta adequada, sargento, sobretudo em Estalinegrado. O sargento aprende depressa. Siga-me três metros atrás. Vê aquela coronha de metralhadora velha naquele monte de escombros? À direita, há uma cratera. Deve ser bastante profunda, pois foi produzida por um obus de 105.
- Como é que sabe?
- Muito simples: a borda não está demolida. Portanto, só há um impacto de obus nesse ponto. Os obuses de 105 fazem buracos desse diâmetro, mais ou menos, e geralmente bastante profundos. Está preparado?
Zaitsev faz um sinal afirmativo. O capitão sobe pela borda da trincheira e começa a rastejar pelo solo esburacado e coberto de escombros. O olhar de Zaitsev segue-o com uma atenção fascinada. Se o capitão não saltar e Zaitsev seguir, exactamente as suas pegadas, estará a salvo... Sai da trincheira e começa a infiltrar-se, com o ventre colado à terra. Num instante, compreende porque é que, em Estalinegrado, todos os uniformes são cor de terra e porque é que, nos momentos de descanso todos os homens manejam agulha e linha.
Teria avançado cinco metros quando, subitamente lhe pareceu que todas as espingardas, todas as metralhadoras, todos os canhões de Estalinegrado estavam a disparar sobre ele. O estrondo era aterrorizador. Zaitsev, com a cabeça enterrada no pó, espera sentir, a qualquer momento, uma dor fulminante a atravessar-lhe o corpo. Espera que o capitão o chame.
Levantando cuidadosamente a cabeça, vê que Rodin está refugiado dentro da cratera. Constata, com grande surpresa, que nenhum obus nem nenhuma bala caíram perto dele. Avança de rastos até à beira da cratera e desliza para dentro dela.
- Lançaram um ataque na outra ponta da rua. Que grande pandemónio.
- A princípio, julguei que estávamos a ser atacados.
- Parece que estão sempre perto, muito perto. Mas se o camarada estivesse no meio do ponto atacado, ouviria ainda melhor que aqui. Tudo se resume a um enorme ruído.
O capitão parece ignorar completamente o medo. Contudo, não se aventura a correr nenhum risco inútil. Reflecte antes de cada gesto, antes de cada passo. A batalha de Estalinegrado é uma dura escola…
- Agora vamos avançar até aquele monte acolá, à direita. Mas, desta vez, fique a menos distância.
Precisaram, de uma hora de avanço penoso, metro a metro, até chegar às traseiras da casa, a um ponto em que se consegue avistar a janela que o sniper utiliza como ponto de tiro. Mas não conseguem ver o atirador, que está protegido por um bocado de parede. Mas ele continua lá, de vez em quando, ouve-se disparar.
- É preciso fazê-lo sair da toca. – diz Zaitsev - Se fica protegido pela parede, nunca o apanho vamos esconder-nos nessa cratera.
Zaitsev monta a espingarda-metralhadora, coloca-a na beira do buraco, empurra uma cinta de cartuchos para o interior, aponta e dispara uma rajada. Fixando o olhar na parede meio destruída atrás do qual se instalou o atirador alemão, vê a beira de um capacete a aparecer lentamente acima da linha quebrada dos tijolos. Dispara novamente e o capacete desaparece.
- Precipitou-se a disparar. – diz-lhe o capitão.
- Não. Fi-lo de propósito. Na próxima vez, só o farei quando conseguir ver metade do capacete.
O capacete só reapareceu vários minutos mais tarde, muito mais a abaixo e, desta vez, antes do capacete assomou o cano de uma espingarda.
- Já sabe onde estamos. – murmura Zaitsev.
Fique escondido até eu acabar com ele.
- Não lhe dê tempo para fazer pontaria, dispare sargento – grita o capitão.
Zaitsev não responde. Não é a 1ª vez que desempenha uma missão deste género e tem a sua própria táctica. Da parede de tijolos parte novo disparo e, por sua vez, o sargento dispara imediatamente. Sabe que os snipers são escolhidos entre os melhores atiradores e que um atirador de elite não consegue resistir ao desejo de saber se atingiu ou não o alvo. Durante 1 ou 2 segundos, observará pela sua mira e se for suficientemente rápido, este segundo será suficiente para o abater. Zaitsev já usou este ardil muitas vezes com êxito, e, desta vez, também deu resultado. Não conseguiu ver se o Alemão ficou morto, mas ficou certamente ferido, porque a sua espingarda deslizou sobre a parede, deu umas voltas no ar e caiu sobre um monte de escombros.
- Atingi-o de certeza. – diz Zaitsev - Mas também é possível que só o tenha assustado e tenha deixado cair a arma por nervosismo. Nesse caso, o mais certo é que volte a disparar dentro de alguns minutos, pois deve ter consigo uma segunda espingarda. Portanto, deixe-se ficar escondido, capitão.
O capitão não responde e Zaitsev espera, sem pronunciar uma palavra, com o olhar fixo no bocado de parede. Ao fundo da rua, a batalha parou. Já só se ouvem rajadas esporádicas. Mas os canhões de artilharia pesada ecoam ao longe; ao fim de um quarto de hora, Zaitsev vira-se e diz.
- Devo tê-lo morto ou ferido. Em todo o caso, já não dispara.
O capitão não responde. Está caído a todo o comprimento, no fundo da cratera, com o rosto colado ao solo. Zaitsev ajoelha-se junto dele e levanta-lhe a cabeça. O olho não passa de um buraco encarnado. O capitão está morto. A primeira reacção de Zaitsev foi de uma grande admiração: a essa distância, com uma única bala, é de uma habilidade incrível. O atirador devia ter uma mira telescópica, ou … uma boa dose de sorte. Depois sentiu pena. Tinha ganho afecto por este capitão de coragem metódica. Nem sequer pode enterrá-lo. Zaitsev teve de se contentar em colocar o barrete sobre o rosto do capitão a fim de o proteger das moscas. Agora é preciso regressar ao posto de comando pelo mesmo caminho. Mas Zaitsev perdeu o seu guia. Pergunta-se se conseguirá recordar-se do caminho.
Teria percorrido aproximadamente metade do caminho quando se apercebeu de que tinha perdido o rasto. Pára, invadido por um sentimento de desespero. Mesmo levando o capitão à frente, já era um desporto capaz de abalar os nervos de qualquer um. Mas sozinho por terreno desconhecido, Zaitsev sente uma tensão tão forte que os maxilares apertados lhe doem. Antes, já tinha combatido na Polónia, em Orel, em Moscovo. Os alemães estavam sempre à sua frente. Aqui estão a toda a volta e há minas russas e alemãs por todo o lado. Sente a tentação de se atirar para a frente para a cratera mais próxima, para que tudo acabe quanto antes; com a morte ou com a salvação; pouco importa, tem é de ser rapidamente. Dominando o medo, Zaitsev continua a rastejar, centímetro a centímetro, para a cratera que está mais próxima, levando a espingarda-metralhadora às costas. Momentos mais tarde, continua a avançar. Descobre o montículo sobre o qual está colocada a velha coronha de metralhadora. Chega à beira da trincheira e deixa-se cair no interior da vala, a salvo. Diante da entrada da cave, Zaitsev vira-se e olha para a janela onde o atirador alemão estava emboscado. Parece deserta. Tirando o gorro do cinto, coloca-o na ponta de um bocado de madeira e levanta-o lentamente acima da beira da trincheira. Ninguém dispara…”



Esta história tem todo um sentido por detrás.
Descubram-no…

Mazi dEUS eX mACHINA