sexta-feira, junho 23, 2006

Observatório.

O Porto apresenta um sol grego que se instala nesta sala de espera de uma das mais movimentadas empresas de passageiros do norte de portugal. Sento-me numa das cadeiras enquanto consulto publicidade ao S.João do Porto por ali depositada, assumidamente destinada a cidadãos estrangeiros, enquanto que ao meu lado, de óculos dourados, uma idosa consulta uma publicação religiosa onde se lia sobre o sagrado coração de Jesus. Por momentos dei comigo a meditar acerca da máquina de propaganda que a igreja católica deverá ter ao seu dispor, do marketing estruturado e consciente dos seus objectivos e que tão bem cria ícones, símbolos, logos, entre outros elementos cuja digestão se dispensa quando nada mais há em que pensar.

Há um fechar de revista e os cinco minutos seguintes são passados a contemplar as circulações várias que me eram dadas a observar. A primeira conclusão é que a maioria dos transeuntes estão para lá dos sessentas, o que espero justificar o facto das senhoras estarem praticamente todas de rosto submerso por revistas de conteúdo que a nós não nos interessa, porque nada tem a ver com a nossa vida. De súbito alguém sentado ao meu lado, que eu já havia seguido há pouco porque se encontrava inexplicavelmente a beber café de olhos posto na máquina que acaba de o servir – estaria à espera de um “boa-tarde e obrigado” atirado com o brilho que só um sorriso simpático pode fazer emitir? A desilusão instala-se seguramente – ora, como dizia, sou interpelado pela dita pessoa, no feminino, que afirma saber que sou conhecedor de manhas de telemóveis e que o dela, preguiçosamente, se negava a captar a rede que lhe permite fazer os últimos contactos antes da viagem. Tomei conta do telefone e como calculam resolvi o problema. Simples desconfiguração das opções de rede, e eu não sou conhecedor de telemóveis, não ao nível que a dita julga que eu sou. Não sou.

O velho clássico começa agora a tomar contornos cada vez mais clássicos. O autocarro leva 40 minutos de atraso e sinto necessidade de mudar de pouso. Ergo-me, coloco a brochura são joanina na mesa onde a encontrei porque aquele S.João das marteladas, dos manjericos, das sete da manhã, dos bailes por todo o canto e esquina, e que ali se vende sob a forma contada, já eu conheço há muitos anos e para mim é de borla, ou pelo menos já foi, quando não era necessário regá-lo.

Encontro guarida ao lado de uma idosa que lia um exemplo daquelas revistas “de conteúdo que a nós não os interessa. Naquela publicação, salvo seja, era possível saber porque foi preso um ex-exemplo para a sociedade portuguesa, participante de um reality-show do tipo “isso agora não interessa nada!”. Mais, apresentavam-se fotos dos papás do detido, revoltados, defendendo a inocência do filho. É certo que o defendam, mas não é preciso que nos vendam isso. Pior, para que alimenta esta velhinha semelhante mercado? Umas dão-lhe no sagrado coração, outras no filho dos pais tristes porque aquele foi preso injustamente e hoje já ninguém lhe reconhece glória.

Não, obrigado! Atiro eu para um magrebino que tentava também ele, vender-me a ideia de que é cristão e tem dois filhos e uma mulher, repito, uma mulher, e que não tem emprego, etc. Não aceito o papel de impressão gráfica com imagens religiosas católicas que o magrebino tenta colocar-me em mãos. Se me tivesse dito que veio de Marrocos tentar a sorte na Europa mas a cena não estava a correr de feição, talvez lhe tivesse oferecido cinco euros. Agora, tentar convencer-me que só tem uma mulher, isso não. Lá o ser católico até posso engolir. Deus meu! O mesmo não acontece com a idosa do lado. Não a da revista, outra. Primeiro lê o papel nas mãos do indivíduo, depois toma-o e procura umas moedas enquanto o Magreb católico contínua a propagandear-se pela sala distribuindo lamentos sob a forma de papel com alguma qualidade gráfica, como disse, e cuja fonte me limito a não especular.

“O meu nome é Pedro. Saí há pouco tempo de um estabelecimento prisional e gostaria que me arranjasses um euro para não voltar à vida do crime!” Fico mudo. Em fracção de segundos reparo-lhe os brincos a imitar diamante, um para cada orelha qual jogador da bola, o moreno do rosto em olhos claros a adivinhar tardes de sol bem passadas, o cabelo arranjado à moda, a pulseira, os anéis, um para mindinho outro para o indicador, o discurso, dez cêntimos foi quanto lhe valeu porque era chato. Aproxima-se da senhora que lê o papel publicitário do Magreb católico, no mesmo instante em que o próprio Magreb se encarrega de levar o que é seu e o suposto ex-condómino de “um estabelecimento prisional” tenta argumentar perante a velha senhora. Estava prometido ao senhor dos dois filhos, atira a idosa. O mesmo voltaria a repetir-se, com alguém de meia-idade, sem constrangimentos verbais e que prontamente diz não poder dar a todos, sugerindo que dividissem o pouco que ela tinha para oferecer. Ainda lá ficaram. Acredito que lá se encontrem. Na sua luta diária. No soberbo lucro em virtude da boa vontade de quem tanto dá a revistas como dá a pedintes. Na aborrecida tarefa de ser aborrecido em troca de uns trocos.


De olhos postos nas vidas,
Babince