A Misteriosa Chama da Raínha Loana
"Fui ao Largo Cairoli e a banca estava fechada. Vagueei pela Rua Dante até ao Cordusio, virei à direita em direcção à Bolsa, e vi que ao domingo ali é o ponto de encontro dos coleccionadores de Milão. Pela Rua Cordusio bancas de selos, ao longo de toda a Rua Armorari velhos postais, cromos, depois todo o cruzamento da Passagem Central ocupado por vendedores de moedas, soldadinhos, santinhos, relógios de pulso, até fichas telefónicas. O coleccionismo é anal, devia sabê-lo, as pessoas estão dispostas a coleccionar de tudo, até caricas de Coca-Cola, no fundo as fichas telefónicas custam menos que os meus incunábulos. Na Praça Edison, à esquerda, bancas com livros, jornais, cartazes publicitários e em frente algumas até vendem bugigangas variadas, candeeiros Arte Nova, certamente falsos, tabuleiros às flores sobre fundo preto, bailarinas de biscuit.
Numa banca havia quatro recipientes cilíndricos, selados, onde, numa solução aquosa (formol?), estavam em suspensão silhuetas cor de marfim, umas redondas, outras como feijóes, ligadas por filamentos absolutamente brancos. Eram criaturas marinhas, holotúrias, pedaços de polvo, corais desbotados, e também poderiam ser o parto mórbido da fantasia teratológica de um artista. Yves Tanguy?
O dono explicou-me que eram testículos: de cão, de gato, de galo e de outro bicho, com rins e tudo o mais.
- Repare, pertencem a um laboratório científico do séc. XIX. Quarenta mil liras cada. Só os recipientes valem o dobro, tudo isto tem pelo menos cento e cinquenta anos. Quatro vezes quatro dezasseis, faço-lhe cento e vinte mil liras pelos quatro. É um bom negócio.
Aqueles testículos fascinavam-me. Por uma vez, era algo que não tinha obrigação de conhecer através da memória semântica, como dizia o doutor Gratarolo, e também não tinham feito parte da minha experiência passada. Quem é que alguma vez viu testículos de cão, quer dizer, sem o resto do cão, em estado puro? Procurei nos bolsos, tinha quarenta mil liras ao todo e numa banca não dá para pagar com cheque.
- Levo os do cão.
- Faz mal em não ficar com os outros, é uma oportunidade única.
Não se pode ter tudo. Voltei para casa com os meus tomates de cão e a Paola empalideceu: - É curioso, parece mesmo uma obra de arte, mas onde é que os vamos pôr? Na sala de estar, onde, sempre que ofereces caju ou azeitona de Ascoli a um convidado, este vomita na carpete? No quarto? Desculpa, não. Vais pô-los no escritório, porventura ao lado de algum livro setecentista de ciências naturais.
- Pensei que tinha feito um bom negócio.
- Será que tens consciência de que és o único homem no mundo, o único à face da Terra desde Adão, a quem a mulher manda comprar rosas e volta para casa com um par de tomates de cão?
- Pelo menos é uma coisa digna do Guiness. Além de que, como sabes, estou doente.
- Desculpa. Já eras doido antes. Não foi por acaso que pediste um ornitorrinco à tua irmã."
Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Raínha Loana
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