It's dead cat season
Esboço e compilação de várias conversas tidas nos últimos dias; visões e algumas palpitações
It’s dead cat season, sem dúvida. Carcaças várias acumulam-se nas bermas das estradas; algumas já desfeitas pelos carros que passam a velocidades ilegais. Sangue no asfalto em poças de carne – o espectáculo da morte. Um darwinismo terrivelmente moderno. Eu passo de carro, entre cadáveres, a urgência aperta-me por dentro. Desvio-me, abrando – em alguns casos raros passo por cima. Nevermind, it’s Ok… just another bad strike.
Sou abanado pela deslocação de um carro que passa e quase me leva parte da frente. “É pá, estes gajos que compram grandes carros e aproveitam os fins-de-semana para andar a aliviar as frustrações da semana são um perigo” diz peters e, apesar da citação demasiado longa, tem toda a razão. Passa-me o pica, tiro três, cinco bafos, volto a rodar para ele, continuamos a viagem. Faixa central, todo cego ao volante e a respeitar os limites de velocidade – esperavam algo diferente? Está nevoeiro e a estrada escorregadia. Break Reform a perfumar o ambiente. As luzes natalícias instaladas à entrada de Gaia propagam a sua mentira: aquela mensagem não se dirige a ninguém em particular… é apenas mais um pro forma. “E quê, bota a kelly valência?”.
“As assimetrias no apoio estatal relativamente ao apoio e remuneração dada aos jovens e o peso das suas contribuições revelam uma enorme injustiça latente a todo o sistema” e enquanto se enchem as bocas de verdades, esperam que os estudantes do futuro tenham todos possibilidades de serem alimentados pelos pais até aos trinta anos – ou que façam um empréstimo catita e altamente seguro para conseguirem cumprir o sonho do salto social – doutores em país de camelos, melhor camelos em país de dromedários. “Os portugueses deviam sentir-se felizes: temos sol; temos praias; boa gastronomia; os serviços estatais básicos funcionam…” Miguel Esteves Cardoso a dizer coisas pela madrugada, mas adorei quando ele disse “devíamos ser felizes: cada português tem uma solução – vivemos num país com dez milhões de soluções”. Tive o azar de ver uma personificação dessas ontem no 77… a olhar, como quem sabe o que fazer, a mesa de matrecos com o seu bigode e pêra a la D’Artagnan. Por acaso não disse nada, mas brindou-me com uma saudação pouco comum nele que me apressei a responder como quem ignora. Lá fora, apesar de frio, é mais seguro para a mente porque ninguém tem soluções, mas apenas algumas opiniões.
“Mira tio, la camarera tien un culo…” e tinha mesmo… e por acaso usava uma calça facilmente conotada com actividades desportivas. Segundo peters “uma calça que não faz favor a ninguém… que está como se não estivesse” – e todos nós preferiríamos que não estivesse enquanto íamos à vez pedir cerveja para nos perder e olhávamos não tão discretamente como isso para o corpo esculpido pelo algodão azul e apertado. Freaks, grunhos – conceitos vários em órbitas alcoólicas e descentes… “Yo estaba dicendo que esa peña tien que dicer cosas a otros lados… Sabes, Portugal acaba por ser pequeno, deixa de ter espaço para ti e tu deixas de ter espaço para os outros…”, e o valenciano não compreendia exactamente, mas aquilo fazia-lhe sentido… afinal de contas ele está aqui e vê com o a solidão entra como uma névoa dentro de nós e se alastra; como ela nos confunde os olhos e engana os sentidos.
Faz-se mais um charro… bebe-se mais uma cerveja. Forget the pain and hit me with music que aqui não há: só há vozes a quebrar a noite, sons de garrafas a partir, alegres grupos de ERASMUS que passam em fuga do Piolho invadido por bófias… encosto-me à parede nesta altura, embrulho-me no casaco e olho em volta a partir das sombras em busca de algo para ver. Uma qualquer surpresa neste terreno minado de actuações. À minha esquerda está um gajo todo aos papos, ambos os olhos pisados, escoriações na cara. As nódoas negras apresentam já aquele tom violáceo de uma semana. Será que ele perdeu? Será que ganhou? Agora bebe apenas, entre amigos, e evita olhar quem passa nos olhos. “Oh pá, nem te vais acreditar: conheci um angolano chamado Alfredo no autocarro. Estava cá a estudar e esteve a contar-me que em Angola se vive num estado de ditadura e que foi por isso que ele veio para cá… esteve a dizer-me que queria estudar e voltar para lá – destruir o sistema por dentro” e eu penso n’A Queda de Um Anjo, as boas intenções calmamente engolidas pela inacção, pelo carácter que se afunda na descoberta do hedonismo… mas sempre fui pessimista e espero que ele seja bem sucedido e destrua esse sistema e todos os outros por dentro ou por fora… afinal de contas, a destruição é um gesto profundamente humano.
Dou por mim no passado “and I need you in the summer, iiiindian summer”, assim mesmo, com a primeira sílaba do segundo verso prolongada num lamento… e o verão e o tempo parecem ter caído como as folhas do Outono… para onde foram os dias e as horas? Em que bolso trago as memórias? “Carnival dogs consume the lines” e eu próprio já não me reconheço ao espelho, nem sequer sei se a parede vazia que olho todas as manhãs é um espelho. Daqui a pouco é Natal, mais um ano que passa e nos consome… em que é que este natal vai ser diferente ou melhor do que os outros? Em que é que a minha vida progrediu? A burocracia consome os dias… uma infinidade de trabalhos e palavras importantes que ficam por dizer… e as pessoas perdem-se e já não se reconhecem quando falam ou se tocam a horas marcadas e com intenções predefinidas. Espiral de afastamento, um passo aqui, um passo ali – e quando se dá conta já se está do outro lado do mundo. E, além do mais, que mundos tenho para oferecer? Excepto o capital intelectual os meus bolsos estão vazios, plenos de pequenos vícios que concorrem para me cortar a vitalidade e para me tomar tempo. Tempo que ainda assim dou fora de horas, em horários que nenhum relógio marca – e do qual ninguém consegue usufruir… É isto que é crescer – perder o controlo do tempo e enlouquecer sabiamente em redor da fogueira deste conceito.
“Grande, tu por vezes deixas-te embrenhar demasiado na teia… e isso não é saudável”, mas é impossível não nos perdermos na teia quando à nossa volta nada mais há senão aranhas que se aproximam dos músculos tensos e presos. A fuga tenta-me, até porque nesta altura mal me tenho de pé e poucas cervejas bebi… e tenho de conduzir. O cansaço é terrível e dói-me algo dentro de mim… não sei bem onde. Como se houvesse uma lâmina quente e invisível dentro de mim a cortar, centímetro a centímetro, órgãos que eu nem sonhava que tinha. “Doctor, doctor, tell me the news”… naaaa! Mas a teia… (perdiendo las risas/visitando ciudades perdidas en la ciudad e recordo-me de uma rapariga venezuelana que estava numa das noites de poesia do Pinguim e que leu um poema dela sobre a razão de estar no Porto, "visitando ciudades con la imagen de mi abuelo caído en el suelo dias antes de mi partida". E ela não conseguia fugir à tristeza…) é um mundo demasiado pequeno… acordo todos os dias com vontade de fugir ou de me fechar em casa sem ver ninguém, longe do PC, com o telemóvel e o telefone desligado, sem notícias, sem pavor, sem dinheiro, sem futuro, sem presente. Sem o pânico de um mundo que não se consegue pôr a girar… e à última hora saio e embebedo-me com a consciência tranquila de não ter de justificar a minha loucura a ninguém.
“KNOW YOUR DOPE FIEND. YOUR LIFE MAY DEPEND ON IT! You will not be able to see his eyes because of Tea-Shades, but is knuckles will be white from inner tension and his pants will be crusted with semen from constantly jacking off when he can’t find a rape victim. He will stager and babble when questioned. He will not respect your badge. The Dope Fiend fears NOTHING. He will attack, for no reason, with every weapon at his command – including yours. BEWARE. Any officer apprehending a suspect marijuana addict should use all necessary force immediately. One stitch in time (on him) will usually save nine on you”, lembrança complicada para se ter pouco antes de ter de pegar num carro e quando a mente me vem a minha imagem todo cego ao volante pouco depois de sair do Sporting, depois de uma bifana e ainda outra cerveja, a vinte quilómetros por hora na faixa da direita com as luzes ligadas e tudo – estupidamente legal – a ser mandado parar em frente ao jardim de S. Lázaro numa operação STOP improvisada à volta do meu carro manhoso e dos três freaks que lá iam. “Em que posso ajudar senhor agente? Cometi alguma ilegalidade inadvertidamente?”, quanto esforço para ser educado, para respirar fundo e pensar… ganha tempo, lança uma cortina de fumo constituída por palavras pentassílabas ou maiores normalmente associadas a membros distintos de classes sociais superiores, faz jogos semióticos com a cabeça deles – claro que num Clio Branco de ’93 não tinha muitas hipóteses… mas confundi-o sem me confundir e vim embora com um veredicto de 0,48 (apesar da contagem de garrafas dar muito mais do que isso). Acabamos por ser “mais espertos do que eles”, tal como vínhamos a gritar dentro do carro momentos antes de sermos parados.
Dead cat seasoned here… e está na hora de ir para casa cruzando o asfalto, vendo os mesmos cadáveres que, excepto quando estão na faixa de rodagem, não são removidos e podemos ver, como se fosse uma repetição de um filme mau, todo o processo de desagregação, a voracidade com que o tempo os devora, o sadismo com que os carros os esmagam para dentro do alcatrão. Será que a isso se chama prevenção rodoviária? “Quando chegar a casa acho que vou fazer um hambúrguer e batatas fritas… não tive tempo para jantar” e se não fosse esse jantar o hambúrguer também seria um cadáver a apodrecer. “Albatross! ALBATROSS!” Tenho trabalhos para fazer e apesar de não ser “um desses jovenszzz dinâmicos e empreendedores que se lançam na chamada febre de carreira e tiram licenciaturas catitas e inscrevem-se em Juventudes Partidárias e não desistem enquanto não alcançam um tacho fixe numa qualquer assessoria” sei que o “journalism is not a profession or a trade. It is a cheap catch-all for fuckoffs and misfits — a false doorway to the backside of life, a filthy piss-ridden little hole nailed off by the building inspector, but just deep enough for a wino to curl up from the sidewalk and masturbate like a chimp in a zoo-cage.”
Acho que me vou encaixar perfeitamente.
josé de arimateia em figuras impróprias dentro do seu protótipo de jaula
1 Comentários:
Dead cat season, claramente. Espero que daqui a uns anos faças parte da " absolute cream " (como dizia o nosso amigo Thompson) do fotojornalismo.
Aquele Abraço!
4/12/07 10:13
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