sexta-feira, novembro 09, 2007

Rapaz Muco escapa à cilada

Os olhos abrem-se. Perante ele a paisagem de toda uma vida: livros caídos pelo chão, papéis colados pelas paredes de madeira, monitores reluzentes cheios de nada, cursores que piscam ao ritmo do tempo.

Rapaz Muco nem acredita que conseguiu regressar. As responsabilidades do dia tinham terminado. Ele sentia-se cansado com o inútil cansaço do dever cumprido; do insignificante trabalho feito; das miseráveis obrigações impostas e vividas.

As interrogações habituais já não são suficientes. O silêncio e a confusão diária levantam outras perguntas – armas dúplices e perigosas. Onde está o meu espaço? Não suportava o emprego que lhe davam à vida. Há dias que não vejo ninguém. Para onde foram os meus amigos? As vozes já não me chegam através dos imprevistos dias… os meus dias delimitam-se todos dentro do tabuleiro da previsibilidade. Estava só. Perdido entre memórias e ilusões, náufrago.

Os frágeis elos que o uniam aos outros humanos eram devorados pelos insectos que lhe invadiam o sono e ele passava horas frente a uma janela aberta, olhando um mundo que não compreendia ou não aceitava: sempre a mesma imutável face dos prédios; o púrpura do amanhecer; o espírito ansioso.

Continuo acordado – uma imensa pressão na minha cabeça – e a claridade matinal desenha os objectos de irrealidade: uma aura branca que nos permite nomear os objectos sem lhes reconhecer uma forma exacta. O corpo da janela é uma prisão de sombra, uma teia de aranha onde tento capturar a perturbante beleza do dia… como se fosse uma tela e eu um qualquer artista.

É cómico… o único tempo para sonhar que ainda tenho são os dias. Essas pequenas pausas entre ocupações que me atiram para as mãos. As noites, esta insónia clara, despertam-me, não me dão descanso. Há tanto ainda a fazer, a ver… mesmo a pensar. Recuso-me a acreditar que tudo está feito e experimentado.

Pobre rapaz, perdido entre ilusões. A idade avança sobre ele. Com ela chegam acrescidas responsabilidades, um certo modo de vida. E onde se encaixa ele com todas as suas dúvidas e existências frustradas? De lado. Fora do enquadramento. É um daqueles fantasmas que circulam fora da órbita do olhar. Sai da sua caverna, faz o seu papel, regressa ainda mais selvagem do que partiu. O tempo é um adversário temível.

Agora penso afinal que o mundo é um enigma benigno, que a nossa loucura torna terrível porque pretende interpretá-lo de acordo com a nossa própria verdadee a nossa verdade é uma coisa terrível. A realidade eternamente manietada pelas reduções dos sentidos, pela tacanhez do intelecto…

Tirou os óculos e carregou no enter. A máquina apitou em discordância. Ele carregou novamente no enter. Novo apito dissonante. Alt+Control+Delete, painel de controlo, terminar processo. Encerrar? Claramente que é preciso encerrar! Click – e o computador exala o seu último suspiro.

Rapaz Muco levanta-se. Escapou a esta cilada. E prepara-se para cair em novo engano.