passagem
"Agora penso afinal que o mundo é um enigma benigno, que a nossa loucura torna terrível porque pretende interpretá-lo de acordo com a nossa própria verdade."
O Pêndulo de Foucault
Umberto Eco
Umberto Eco
O espelho não devolve a minha face. Bebia ao balcão como um adulto: fazia o pedido com uma voz cerrada e adulta, olhos no infinito por detrás de quem atende os pedidos. Saía e vinha passear a cerveja - noites agradáveis e quentes e sem vento ou como ontem em tempestades de Verão. A rua plena de pessoas e vozes que incomodam vizinhos, alegria... ou um qualquer antídoto para o habitual cansaço.
Ahmed sai detrás do balcão e dirige-se até à porta para repousar e saborear o ar deste deserto. Oferece um cigarro a quem quer que esteja cá fora; fuma, conversa... entram mais pessoas: Assalamu rraleikumu. Rraleikumu ssalam. - Bem vindos!
Volto ao balcão e peço outra cerveja sem ver a minha face devolvida. A rua chama-me e eu volto para o passeio e sento-me nele... esperando. Hoje não aparecerá muita gente, mas serão importantes.
Bebo e penso a passagem dos anos. Tráz toda a sabedoria relativa: acomodamo-nos ao mundo quando o deviamos compreender. As coisas existem fora de nós, longe de qualquer absoluta integração nos processos cerebrais que acabam por nos caracterizar enquanto indivíduos. Sempre assim foi... Crescer é cair na falácia da compreensão - ou pensar que os mecanismos que esculpimos para o compreender o exterior são os mais perfeitos. - "practice makes perfect"!
Ahmed, em muitas conversas tidas em raros momentos de pausa, diz que o Curdistão morreu... que a Turquia não existe. Quando lhe perguntei se a língua curda mantém uma componente escrita ele respondeu-me que o alfabeto é o europeu... mas que até 2000 não se podia escrever ( e que quem fosse apanhado era morto.) Ahmed diz que já passou pela Holanda. Itália, Alemanha... sempre a trabalhar ou a procurar um país.
"Robot! Ahmed robot! Não precisa de dormir! Gosta de discoteca!"
Enquanto sorri e bebe o seu chá trabalha das 8 da manhã às 2, 3, 4 da manhã - não expulsa quem está em sua "casa" a beber ou a rir. Se lá chegarmos às 8 da manhã para tomar o café que inaugura o dia ele está lá a fazer o pão e a massa para as pizzas desse dia... a cortar os vegetais que se vão usar nos pratos que lá tem para todos comerem. As mãos que fazem o pão, as mãos que fazem a massa, as mãos que cortam os vegetais.
Soul food! - entrar de alma a arder, a morrer de fome e ser alimentado até ao âmago. O picante desperta as papilas para o milagre do sabor e todo o mundo parece acordar. Quase sempre se recusa a deixar pagar o café no final das refeições... uma oferta...
Ahmed diz-se verdadeiramente democrático: nas paredes tem um santo antónio e uma tela que diz que quem é pobre não precisa de ir a Meca. Portanto há espaço para todos aqui... Cruzam-se pessoas e falam respeitosamente, aprendem devagar a existir...
A "vida económica" corre-lhe bem enquanto se mata a trabalhar dizendo que não precisa de dormir e nós nos enchemos de cerveja e dos seus cozinhados.
Alimentados até à alma podemos continuar a despi-la... imensas conversas em que se faz ver que tudo é multiplice, tudo é diferente, tudo é uno debaixo das estrelas.
Têm sido dias bons: aproveitar o sol e a praia; a companhia de quem me faz sentir humano e parte de todo este microcosmos que reconhecemos como sociedade; a companhia de amigos que infelizmente se vêem menos vezes.
Ontem, graças à bondade de Ahmed, para saciar a fome e a sede numa das paragens da chuva em cima de um banco havia: uvas, whisky, vodka, champagne... deu-me uma prenda.... um licor que não tenho coragem de abrir.
Matando as últimas luzes com um sorriso cansado nos lábios - amanhã há trabalho para fazer.
Chev baz Ahmed! Amanhã voltamos para comer algo e nos rirmos um pouco... eu trago o champagne.
josé de arimateia, um ano mais velho
Ahmed sai detrás do balcão e dirige-se até à porta para repousar e saborear o ar deste deserto. Oferece um cigarro a quem quer que esteja cá fora; fuma, conversa... entram mais pessoas: Assalamu rraleikumu. Rraleikumu ssalam. - Bem vindos!
Volto ao balcão e peço outra cerveja sem ver a minha face devolvida. A rua chama-me e eu volto para o passeio e sento-me nele... esperando. Hoje não aparecerá muita gente, mas serão importantes.
Bebo e penso a passagem dos anos. Tráz toda a sabedoria relativa: acomodamo-nos ao mundo quando o deviamos compreender. As coisas existem fora de nós, longe de qualquer absoluta integração nos processos cerebrais que acabam por nos caracterizar enquanto indivíduos. Sempre assim foi... Crescer é cair na falácia da compreensão - ou pensar que os mecanismos que esculpimos para o compreender o exterior são os mais perfeitos. - "practice makes perfect"!
Ahmed, em muitas conversas tidas em raros momentos de pausa, diz que o Curdistão morreu... que a Turquia não existe. Quando lhe perguntei se a língua curda mantém uma componente escrita ele respondeu-me que o alfabeto é o europeu... mas que até 2000 não se podia escrever ( e que quem fosse apanhado era morto.) Ahmed diz que já passou pela Holanda. Itália, Alemanha... sempre a trabalhar ou a procurar um país.
"Robot! Ahmed robot! Não precisa de dormir! Gosta de discoteca!"
Enquanto sorri e bebe o seu chá trabalha das 8 da manhã às 2, 3, 4 da manhã - não expulsa quem está em sua "casa" a beber ou a rir. Se lá chegarmos às 8 da manhã para tomar o café que inaugura o dia ele está lá a fazer o pão e a massa para as pizzas desse dia... a cortar os vegetais que se vão usar nos pratos que lá tem para todos comerem. As mãos que fazem o pão, as mãos que fazem a massa, as mãos que cortam os vegetais.
Soul food! - entrar de alma a arder, a morrer de fome e ser alimentado até ao âmago. O picante desperta as papilas para o milagre do sabor e todo o mundo parece acordar. Quase sempre se recusa a deixar pagar o café no final das refeições... uma oferta...
Ahmed diz-se verdadeiramente democrático: nas paredes tem um santo antónio e uma tela que diz que quem é pobre não precisa de ir a Meca. Portanto há espaço para todos aqui... Cruzam-se pessoas e falam respeitosamente, aprendem devagar a existir...
A "vida económica" corre-lhe bem enquanto se mata a trabalhar dizendo que não precisa de dormir e nós nos enchemos de cerveja e dos seus cozinhados.
Alimentados até à alma podemos continuar a despi-la... imensas conversas em que se faz ver que tudo é multiplice, tudo é diferente, tudo é uno debaixo das estrelas.
Têm sido dias bons: aproveitar o sol e a praia; a companhia de quem me faz sentir humano e parte de todo este microcosmos que reconhecemos como sociedade; a companhia de amigos que infelizmente se vêem menos vezes.
Ontem, graças à bondade de Ahmed, para saciar a fome e a sede numa das paragens da chuva em cima de um banco havia: uvas, whisky, vodka, champagne... deu-me uma prenda.... um licor que não tenho coragem de abrir.
Matando as últimas luzes com um sorriso cansado nos lábios - amanhã há trabalho para fazer.
Chev baz Ahmed! Amanhã voltamos para comer algo e nos rirmos um pouco... eu trago o champagne.
josé de arimateia, um ano mais velho
2 Comentários:
Sempre...
Até após o findar da última das luzes...
Fraternamente!
19/7/06 22:41
Sem dúvida que a "Mezopotamya" e os seus habitantes Ahmed e Tahar são a prova viva que ainda existe bondade e fraternidade nas pessoas.
Abraço!
20/7/06 02:19
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