quarta-feira, julho 02, 2008

Ode à noite (inteira)

regressando a um dos propósitos esquecidos do jardim, aqui fica a dica para um livro que chega em recomendação directa do autor deste blog.

Ode à noite (inteira)


Gosto do momento, exacto ou nem por isso,

em que se torna possível colar cartazes

nas paredes ao lado dos meus ombros (espero

o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas

gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono

que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas

– ou das pessoas que desconheço

e das bebidas todas que ignoro

(porque me matam menos e se chamam

– como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo).

Existem, claro, raparigas louras um tanto

heterodoxas que não te apetece beijar

(a forca do bâton, perfeita – o cigarro aceso

pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de

um dia procriar com zelo, evitando rugas,

tumores e o mundo como representação misógina.

Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,

com a cerveja a premiar a farda

demasiado verde e os bigodes de serviço.

Outros, alguns, tornam concreto o torpor

de um charro e pedem-te em crioulo básico

um cigarro português que tu vais dar,

sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,

t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar

por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.

Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar

qualquer, país de enganos e baratas. E

quase gostas disso, quase: a música de punhais,

servil, um certo e procurado desencontro.

Um táxi te ensinará depois o caminho de casa

– ou o seu contrário, pois só ali (anónimo

e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.

Manuel de Freitas

[SIC]

Lisboa, Assírio & Alvim, 2002